Em 1962, Copenhague, a capital dinamarquesa, foi tomada por uma polêmica.
Estava nos jornais:
“Nós não somos italianos”, dizia uma manchete.
“Usar espaços públicos é contrário à mentalidade escandinava”, explicava
outra.
O motivo da polêmica:
Um jovem arquiteto chamado Jan Gehl, que tinha conseguido um emprego na
prefeitura meses antes, estava colocando suas manguinhas de fora. Gehl, que
tinha 26 anos e era recém casado com uma psicóloga, vivia ouvindo dela a
seguinte pergunta: “por que vocês arquitetos não se preocupam com as
pessoas?”. Gehl resolveu preocupar-se. E teve uma ideia.
Havia em Copenhague uma rua central, no meio da cidade, cheia de casas
imponentes e de comércios importantes. Era uma rua que tinha sido o centro
da vida na cidade desde que Copenhague surgiu, no século 11 – a rua viva,
onde as pessoas se encontravam, onde conversavam, onde os negócios
começavam, os casais se conheciam, as crianças brincavam, a vida pública
acontecia. Nos anos 1950, os carros chegaram e aos poucos essa rua foi
virando um lugar barulhento, fumacento e perigoso. As pessoas já não iam
mais lá. Trechos inteiros tinham sido convertidos em lúgrubes
estacionamentos.
Pois bem. Aquele jovem arquiteto tinha um plano: fechar a rua para carros.
Copenhague não aceitou facilmente a novidade. Os comerciantes se revoltaram,
alegaram que os clientes não conseguiriam chegar. São dessa época as
manchetes de jornal citadas no começo do texto. O que os jornais diziam
fazia algum sentido: Copenhague não é no Mediterrâneo. Lá faz frio de
congelar – o mês de dezembro inteiro oferece um total de 42 horas de luz
solar. Ninguém quer andar de bicicleta, ninguém quer caminhar. Deixe meu
carro em paz.
Mas o jovem arquiteto ganhou a disputa. Nascia o Strøget, o calçadão de
pedestres no meio da cidade que hoje é a maior atração turística de
Copenhague. As pessoas adoraram a rua para pedestres desde que ela foi
fundada. Na verdade, o comércio da região acabou lucrando muitíssimo mais,
porque a área ganhou vida e gente passou a caminhar por lá a todo momento. É
até lotado demais hoje em dia.
O arquiteto Gehl caiu nas graças da cidade e continuou colaborando com a
prefeitura. Suas ideias foram se aprimorando. Ele descobriu que o ideal não
é segregar pedestres de ciclistas de motoristas: é melhor misturá-los.
Alguns de seus projetos mais interessantes são ruas mistas, nas quais os
motoristas sentem-se vigiados e dirigem com um cuidado monstro. Outra
sacada: que essa história de construir ruas para diminuir o trânsito é
balela. Quanto mais rua se constrói, mais trânsito aparece. Quanto mais
ciclovia, mais gente abandona o carro.
Em grande medida graças às ideias de Gehl, Copenhague é a grande cidade
europeia com menos congestionamentos. 36% dos deslocamentos são feitos de
bicicleta, mesmo com o clima horrível de lá, e a população tem baixos
índices de obesidade e doença cardíaca.
“Copenhaguizar” virou um verbo: significa tornar uma cidade mais agradável à
maneira de Copenhague. Jan Gehl abriu um escritório de arquitetura cuja
filosofia é “primeiro vem a vida, depois vêm os espaços, depois vêm os
prédios”. Ele passou a ser contratado por várias cidades australianas
interessadas em “copenhaguização”. Seus projetos revolucionaram Sidney,
Perth e Melbourne, tornando seus centros mais divertidos, cheios de cafés,
arte e vida, reduzindo carros, atraindo gente para fora de casa. De uns
tempos para cá, Gehl, que hoje tem 74 anos, passou a ser procurado pela “big
league” das cidades: Londres e Nova York o contrataram como consultor para
transformar seus espaços urbanos. Ambas têm feito muito desde então.
Enquanto isso, aqui na minha cidade, se alguém fala em melhorar o espaço
público, logo ouve:
“Nós não somos dinamarqueses. Usar espaços públicos é contrário à
mentalidade brasileira.”
50 anos atrasado.
Outra frase que se ouve muito aqui:
“Brasileiro adora carro.”
Adora nada, meu filho, presta atenção. Isso é propaganda de posto de
gasolina!
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*Por Denis Russo Burgierman*